Monday, October 16, 2006

UM DIA ATRÁS DO OUTRO



"Sonhadora, luminosa e especial, era uma pessoa rara. Passou a vida a viajar, a partir e a chegar. Demorava em cada lugar o tempo exacto que precisava para respirar. Em criança ficava muitas vezes distante, abstracta, o olhar preso em coisa nenhuma. Tinha uma janela só dela, onde se encostava quando queria sonhar os seus sonhos preferidos. Cabelo muito liso, comprido, olhos rasgados e uma boca que ria sem querer, ficava esquecida a olhar sem ver. A mãe e os irmãos conheciam os seus devaneios e deixavam-na estar (...) Falava sempre a rir, numa voz doce e cantada que não parecia deste mundo. Tinha uma vida própria e uma imaginação prodigiosa. Havia bonecas no seu quarto e também alguns brinquedos, mas entretinha-se mais com as brincadeiras que inventava (...) A mãe via crescer aquela sua filha com uma afeição especial. Sabia-a diferente e guardava para si aqueles gestos e todas as suas fantasias. Tinham segredos antigos que partilhavam na penumbra do quarto, antes de adormecer, quando a mãe chegava para apagar a luz e aconchegar os lençóis. As irmãs e os irmãos adormeciam antes e ela deixava-se ficar muito quieta à espera daquela hora encantada. Os anos passaram, a filha teve os seus próprios filhos, que embalou com as canções de sempre, e um dia, quando eram horas de apagar a luz do quarto, ela não apareceu. Nem na outra noite, nem nas mil e uma noites que se seguiram. E agora é a mãe, avelhentada, que seca todas as lágrimas de saudades, apaga as luzes e se deixa ficar naquela janela noites inteiras acordada, a sonhar."
Laurinda Alves

0 Comments:

Post a Comment

<< Home