Wednesday, October 18, 2006

ARQUITECTURA DE INTERIORES


" Por vezes, imaginamos duzentas vezes o que dizer a quem queremos seduzir, numa circunstância especial. Repetimo-lo até à exaustão; se possível ao espelho... para vermos as boas figuras de que somos capazes. Chegada a altura de mostrar o que valemos, inspiramos e, ao repetirmos uma vez mais a fórmula certa, surpreende-nos sermos capazes de dizer algo brilhante do género: "E nós, não nos conhecemos já de algum lugar?..." As emoções são tão naturais como a sede, tenho-o repetido. "Falam" à solta no nosso corpo e à margem da vontade. Embaraçam-nos, muitas vezes, sempre que não sabemos o que fazer com elas. As emoções são a consequência da sabedoria que a experiência deixa guardada em cada um de nós. Vão sempre um pouco mais além da nossa capacidade de as compreender: são uma forma menos complicada, e mais atenta, de pensarmos... sem dar por isso. As emoções são o grande semáforo da vida. O verde é a paixão; é de avançar. Surge quando menos o esperamos e, por vezes, nos lugares onde imaginávamos só haver stops, sentidos proibidos e caminhos sem prioridades. O amarelo é a intuição: tanto nos pressiona de esperança e nos faz apressar a vida, como nos sinaliza o medo, quando nada o faria prever. O vermelho é o medo e a prudência e leva-nos a parar e a reflectir, até que outra cor nos leve a avançar. (O medo não supõe uma relação fóbica com a vida. Fobia é o medo de ter medo. É o contrário da prudência: não nos deixa pensar e leva a que se evitem quaisquer emoções com a megalomania de que só quem evita as surpresas vive feliz. Fobia não é vermelho: está perto do escuro da depressão)".

"As pessoas são os arquitectos das nossas emoções. Criam espaços, com luz, onde o nosso olhar se expande e onde crescemos, como fazem de recantos - antes bonitos- lugares esconsos onde, às vezes, mal nos mexemos. Há cores que o tempo torna pálidas. Os tons pastel, com muitas nuances, representam relações sem paixão, que nos surpreenem junto a quem se transformou de um grande amor... num bom amigo. Os arquitectos do nosso interior geram semáforos que abrem diversas cores ao mesmo tempo. Muitas cores ao mesmo tempo põem em conflito a nossa relação com a vida; geram o vermelho e levam-nos a parar. Mais dolorosas são as cores contraditórias que uma mesma pessoa cria em nós, em função de momentos, muito diferentes, passados com ela, que convivem na nossa memória. Por vezes, leva-nos à tentação de elegermos só os lugares em que fomos impedidos de crescer, sem dar por isso."

" Algumas das pessoas que arquitectam a depressão, dentro de nós, vivem no nosso interior como se fizessem parte de um ecossistema onde tudo parecesse condenado a ser para sempre descolorido. Algumas delas levam-nos a entender que, depois de alguém entrar na nossa vida, não sai... nem mesmo com ordem de despejo. Compartilharmos a nossa vida com alguém leva a que se assuma uma natureza monogâmica, quando, em verdade, vivem connosco todas as pessoas com quem aprendemos e crescemos. São a nossa família, de quem muitos levam a vida a fugir... e que nos acompanha com quem quer que estejamos. Não é, ao contrário do que se poderia supor, uma promiscuidade cá dentro. Aquilo que se espera de quem entra de novo em nós é que recrie a luz e que repense os espaços. Que seja um arquitecto que, de relações em ruínas, crie jardins privados, de semáforos intermitentes nos abra para o verde e nos sensibilize para pensar, mesmo quando as emoções que nos gera nos levem a dizer, num sobressalto: « E nós, não os conhecemos já de algum lugar?»"

Extraído de: "Crianças para Sempre"
Eduardo Sá

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