Friday, October 20, 2006

A DECISÃO


" - Decide-te"... Irra!, não era assim tão simples, como pode uma fulana acabar com tal batata quente no colo? Reviu os acontecimentos ao ritmo frenético em que a vida lhe passara diante dos olhos aquando do último tremor de terra. O último antes daquele... Chegara a casa nas lonas. E ele refastelado no sofá, absorvido pelas correrias atrás da bola de vinte e dois atrasados mentais. Não se dera sequer ao trabalho de pôr o guarda-chuva pingante na banheira, limitara-se a grunhir em resposta a beijo no rosto e festa no cabelo. Paciência! Esquecera o caso bicudo que a mantivera em resmungo permanente no escritório e fitara, gulosa, os congelados que tiritavam no frigorífico. Microondas, comer, pernas estendidas, cabeça mais leve. O cretino rebate de consciência - ele sempre lhe gabava a mão para a cozinha, elogio tirânico de braço dado com o lamento, "comida de plástico aturo eu ao almoço". Talvez, mas antigamente ia almoçar com ela. Depois, o prazer tornara-se esforço hercúleo; antes de esbarrar na mais completa impotência, "não posso, que queres que te faça"? Nada de especial, apenas o que costumava fazer... Fazer, então, o jantar. O soufflé de peixe crescera num ápice, escoltado pelos legumes cozidos que ele detestava mas lhe permitiam acreditar que fazia dieta. Já apaziguada, vítima de reflexo condicionado tão feminino como antigo, recordara a sua preferência por vinho tinto e abrira garrafa envelhecida. Afinal, ambos exaustos e ansiosos por relaxar, com uma ajudinha de Baco a noite ainda podia ser um êxito. Pois. Não lhe pedira para pôr a mesa, com medo de escutar o "vou já" inerte da praxe. Tudo nos conformes, "vamos jantar"? A resposta distraída, sempre em estado de hipnose - "se não te importas, faz-me um tabuleiro, o jogo ainda vai a meio". Se não te importas? Pergunta ou interjeição? "Por acaso importo-me!" "Obrigado." Era interjeição... E de repente uma fúria homérica, ei-la em frente da televisão (que embora sem culpas directas no cartório ficara sem pio). "Vamos ter uma conversinha". A sua expressão incrédula, enquanto procurava que o olhar a torneasse rumo ao écrã, "sai da frente"! A "conversinha" transformada num tremendo lavar de roupa suja, ela esfregando-lhe na cara o egoísmo de anos e ele rápido a culpar-lhe o período menstrual, as amigas comunistas e a angústia dos quarenta. O bluff de jogador de póquer, "queres a separação?" A pouca vontade de perder o braço de ferro e o medo de o perder a ele. As palavras em auto - gestão - "se vamos continuar assim, quero". Sua excelência porta fora como uma bala (por raiva ou para não perder a segunda parte do jogo?). A ressaca. O estranho sentimento de não ter uma vírgula a retirar ao que dissera e contudo desejar não o ter dito. A casa vazia. A espera (...) muitas meias horas passadas e ele sem aparecer, maldito orgulho!, todos os amigos o diziam na merda. As semanas. A dúvida crescendo, bastaria gostar dele? Todos os pequenos nadas que a tinham enchido de amargura diante dos olhos, era verdade - assim não valia a pena. Mas ..., talvez a separação ressuscitasse o seu homem do antigamene. Por dentro, claro!, não lhe ia exigir que perdesse os doze quilos acumulados em outros tantos anos de casamento, o corpo muda, também via cascas de laranja nas próprias coxas. Dar-lhe uma oportunidade. Mas sem fraquejar, seria catastrófico! Aconselhar-se com especialista. A Laura muito séria no jardim, dona de experiência assinalável. No currículo três divórcios, o dobro de namorados e variadíssimas curtições, costumava dizer que os homens ainda a podiam magoar, mas nunca mais surpreendê-la. A frase pitonísica - "vai ao cinema com um tipo qualquer". O colega de escritório que sempre tivera um fraquinho por ela e pensara que lhe saíra a sorte grande, pobre diabo! As aldeias em que vivemos, tudo se sabe. Vinte e quatro horas depois, ela de regresso ao fim da tarde e ele no sofá, mas a televisão desligada. Um discurso entre furioso e sedutor. As perguntas machas a coberto da ternura que cheira a lençóis. Um sexo a tresandar a competição com fantasma. De manhã a frase arrogante do quarto de banho, "tudo isto é uma criancice, não se destrói um casamento por angústias existenciais". Um ar de triunfo, "a decisão é tua". Irra!, tinha medo de o perder, mas também de perder o resto da vida com ele. "Decide-te!"... Olhou-o com ternura. O Carlos. Amigo de todas as horas, chamado em socorro fora de horas, bricoleur nas horas vagas. "Desculpa, já decidi. Substituí a fechadura".


Extraído de: "Estes Difíceis Amores"
Júlio Machado Vaz

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