Sunday, March 11, 2007

UM LUGAR AO SOL




"Andamos todos mais ou menos perdidos entre sombras" (J.S.)




Há muitos anos, a minha filha comentou que um prédio, junto ao qual passávamos, era assombrado... porque fazia sombra a um outro, que lhe era próximo. Talvez ela visse a disputa pela luz a partir da sombra que, muitas vezes, os adultos cá de casa lhe fariam e - imagino eu - terá descoberto que, afinal, o sol, quando nasce, não é para todos. E terá pensado, do alto dos seus cinco anos, que crescer seria conquistar um lugar... ao sol. É engraçado repararmos que os lugares onde predominam sombras - sejam assombrados ou, mais modestamente, sombrios - sejam a delícia dos fantasmas. Dos nossos, está bem de ver, que, dada a ausência da luz (com a qual parecem ter um conflito que se prolonga há gerações), deixam à solta os medos mais secretos que transbordam para as pessoas, inundam o espaço, e nos põem a fugir de tudo o que, teimosamente, insistíamos guardar na sombra. Já o assombro - ou o júbilo - talvez guarde a ideia de um reencontro feliz de nós com algumas partes do mundo interior com quem parecíamos estar mais ou menos desavindos. Um dia, pela vida fora, a Sofia perceberá que ficamos sombrios sempre que desistimos de conviver com as nossas sombras. E, se insistirmos em fugir delas, Luky Luke que se cuide, porque haverá mais uns heróis acidentais a disparar "a torto e a direito" em relação a tudo o que se mexa. Pergunto-me, desde há muito, quando nasce a consciência da sombra - como sombra - numa criança. Sabemos que ela surge, inicialmente, como uma realidade que se destaca do corpo, e que é estranha para uma criança pequenina. Daí a perplexidade das crianças quando reparam na sua sombra e a miram repetidamente. Talvez percebam como ela os acompanha, os imita, e como pára sempre que elas param. Apesar de lhes ser estranha. Quando é que uma criança tem consciência da sombra como uma projecção da imagem do corpo e não como um outro? Só depois de perceber como os pais fazem parte de si. Freud estaria certo: não só os pais guardam o sono como são os guardiões das sombras. E talvez seja à falta de quem os guarde ( e se torne o sol das suas vidas) que tantas pessoas lutam - com desespero e sem escrúpulos - por um lugar ao sol. Um dia, a Sofia compreenderá que o sol, quando nasce, será, para sempre, de quem o fez nascer (...)


Extraído de: " Tudo o que o amor não é"


Eduardo Sá

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